sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Desconstruindo Marte e Vênus: reflexões sobre neurossexismos e neurofeminismos

De acordo com um famoso livro de auto-ajuda "os homens são de Marte e as mulheres são de Vênus", o que é uma outra forma de dizer que a diferença entre  os dois sexos seria tão grande que é como se habitassem planetas distintos. Mas paremos para pensar um pouco: homens e mulheres são realmente tão diferentes assim? Grande parte das pessoas provavelmente diria que sim, afinal basta olhar para perceber que, em geral, homens e mulheres se vestem de formas diferentes e se comportam de maneiras distintas - o que sinaliza que também, e talvez, pensem e sintam diferentemente. Eu não discordaria totalmente desta resposta, mas faria mais algumas perguntas: por que homens e mulheres são diferentes? Será que já nasceram diferentes ou estas diferenças foram sendo construídas no decorrer do processo de desenvolvimento? Muitas pessoas, assim como muitos cientistas, tendem a acreditar na existência de diferenças inatas entre homens e mulheres - e por inato quero dizer tudo aquilo que a criança já possui ao nascer. Muitos cientistas acreditam que a nossa masculinidade e a nossa feminilidade são construídas, ou no mínimo pré-moldadas, antes mesmo de nascermos. Nossa genética, que herdamos de nossos pais, assim como a ação de certos hormônios durante a gestação, fariam com que nossos cérebros se diferenciassem - e é esta diferença que tornaria os homens essencialmente diferentes das mulheres e vice-versa. O papel da cultura e da educação, ainda que não seja negado completamente, é diminuido ao ser entendido como coadjuvante da biologia, esta sim a verdadeira protagonista do processo de diferenciação sexual.

Alguns autores vão além e buscam a explicação para as diferenças entre homens e mulheres em nosso passado evolutivo. A narrativa é quase sempre a mesma: em um passado distante, na "época das cavernas", os homens eram responsáveis pela caça e pela procura de alimentos enquanto as mulheres pela preparação de tais alimentos e pelo cuidado dos filhos. Esta narrativa, amplamente disseminada pelos livros de auto-ajuda e de divulgação científica, busca a explicação de nossos comportamentos atuais neste passado distante. A ideia é que homens e mulheres seriam diferentes atualmente  porque possuiriam histórias evolutivas diferentes, que teriam moldado seus genes de forma diferenciada, gerando com isso cérebros e comportamentos igualmente diferenciados. O grande problema de tal explicação é que ela permanece hipotética - como, aliás, quase todas as explicações do campo da psicologia evolutiva. A principal dificuldade é como saber com precisão como viviam os seres humanos há 50 mil anos, momento em que a escrita ainda não tinha sido inventada. Os arqueólogos bem que tentam, mas é muito difícil reconstruir fidedignamente este passado baseando-se apenas nos escassos vestígios deixados por nossos antepassados. Além disso, como apontam a neurocientista Catherine Vidal e a jornalista científica Dorothée Benoit-Browaeys no livro Cérebro, sexo e poder, tal explicação não passa "de uma representação mítica que consiste em projetar os nossos quadros mentais [do presente] na cultura dos homens do passado".

Mais recentemente, tal explicação tem se misturado a outras narrativas que envolvem hormônios, neurônios e sinapses. A ideia básica é que a estrutura e o funcionamento do nosso cérebro seriam determinados ou fortemente influenciados pela dominância de certos hormônios. Se durante e após o período de gestação formos inundados por hormônios "masculinos" nos masculinizaremos - e teremos "cérebros masculinos"; se formos inundados por hormônios "femininos", nos feminizaremos - e teremos "cérebros femininos". Esta teoria explicaria tanto as características "típicas" masculinas e femininas quanto a existência de "homens feminilizados" e "mulheres masculinizadas", assim como dos(as) transexuais, que teriam uma espécie de dominância hormonal inversa à de seu sexo biológico original. Os hormônios seriam, assim, os grandes responsáveis por termos cérebros e comportamentos "masculinos" e "femininos". Repare bem nas aspas pois, de fato - como já apontei anteriormente - cérebros e hormônios não podem ser masculinos ou femininos; somente as pessoas, ou seja, os indivíduos como um todo, podem ser. A testosterona, por exemplo, é chamada de hormônio masculino por ser mais elevada nos homens; no entanto, as mulheres também possuem tal hormônio - assim como os homens possuem estrogênio, um hormônio "feminino".  Da mesma forma, é equivocado falar em comportamento masculino ou feminino pois a forma como os homens e mulheres se comportam varia imensamente entre as culturas - e mesmo dentro da mesma cultura - assim como variou no decorrer da história. Os homens são mais agressivos e as mulheres mais dóceis? Depende. Alguns indivíduos se encaixam dentro deste estereótipo; outros não. Por mais que se queira generalizar, existem homens dóceis e mulheres agressivas e isto não significa que tais indivíduos não sejam homens e mulheres; significa apenas que eles não se encaixam nos estereótipos de gênero. 

No sensacional livro Homens não são de Marte, mulheres não são de vênus, a psicóloga Cordelia Fine chama de neurossexismo justamente as interpretações dos achados neurocientíficos que naturalizam os estereótipos de gênero socialmente construídos. Como afirma a autora, "algumas pessoas usam a neurociência de uma maneira que ela foi frequentemente usada no passado: para reforçar, com toda a autoridade da ciência, estereótipos e papéis antiquados". E é justamente contra este discurso cerebralista e neurossexista que a autora volta sua mira. Felizmente ela não está sozinha neste empreitada. Desde 2010 um grupo de pesquisadoras que se descrevem como neurofeministas - que inclui a própria Cordelia Fine - vem se articulando  em uma rede internacional denominada NeuroGenderings, cuja proposta, segundo a pesquisadora Marina Nucci, é “criticar o dualismo e a noção de dismorfismo sexual e discutir como fatos neurocientíficos sobre sexo e gênero são produzidos, chamando atenção para o contexto histórico, cultural e político e para as consequências éticas desses estudos”. Um dos principais focos desta rede é justamente combater o neurossexismo. Cabe salientar que as neurofeministas não pretendem efetivar tal "combate" simplesmente criticando as pesquisas neurocientíficas mas também, e especialmente, produzindo ciência - tanto que uma frase bastante repetida pelas pesquisadoras, e que dá título ao artigo de Nucci, é "Não chore, pesquise". Embora tais pesquisadoras sejam comumente taxadas de anti-neurociências a proposta delas não é simplesmente descartar a biologia, mas entender de que forma nosso sistema nervoso interage com o ambiente. O conceito de neuroplasticidade é extremamente importante nesse sentido, pois aponta para o entendimento de que nosso cérebro é moldado continuamente no/pelo mundo. Como afirma Fine em seu livro, "o nosso cérebro, como estamos começando a entender, é modificado pelo nosso comportamento, pelo nosso pensamento e pelo nosso mundo social. A nova perspectiva neuroconstrutivista do desenvolvimento do cérebro enfatiza o emaranhado simples e estimulante de uma contínua interação entre os genes, o cérebro e o ambiente". Para a autora, as diferenças entre os sexos/gêneros devem ser entendidas levando-se em conta esta permanente interação. E é por isso que, segundo este ponto de vista, seria equivocado dizer que homens são de Marte e mulheres são de Vênus. Não! Homens e mulheres habitam o mesmo mundo e são por ele formados - e suas diferenças não se devem simplesmente à ação dos genes e hormônios, mas sim a um complexo processo de interação entre biologia e cultura.

Observação: Um importante estudo publicado em 2015 no prestigioso periódico Proceedings of the National Academy of Sciences/PNAS apresentou fortes evidências de que embora existam algumas diferenças no funcionamento cerebral de homens e mulheres, tais diferenças não seriam suficientes para se falar em "cérebros masculinos" e "cérebros femininos" - isto porque haveriam também significativas diferenças entre os próprios homens e as próprias mulheres. Após realizarem exames de ressonância magnética no cérebro de mais de 1400 homens e mulheres e avaliarem tanto o volume de suas substâncias branca e cinzenta, quanto a quantidade de conexões neuronais e espessura do córtex cerebral, os pesquisadores concluíram que "embora existam diferenças de sexo/gênero no cérebro e no comportamento, humanos e cérebros humanos são compostos de 'mosaicos' únicos de características, algumas mais comuns em mulheres comparadas com homens, algumas mais comuns em homens em comparação com mulheres e algumas comuns em mulheres e homens. Nossos resultados demonstram que, independentemente da causa das diferenças observadas entre sexo/gênero no cérebro e no comportamento (natureza ou cultura), os cérebros humanos não podem ser categorizados em duas classes distintas: cérebro masculino/cérebro feminino" (veja aqui uma palestra TEDx da primeira autora deste artigo, a neurocientista e neurofeminista israelense Daphna Joel, falando sobre esta questão três anos antes deste estudo ser publicado - o video tem legendas em português, basta acioná-las). Comentando esta pesquisa, o psiquiatra Michael Bloomfield da University College London, afirmou o seguinte: "Se os resultados deste estudo forem replicados e relacionados ao pensamento e comportamento, este estudo não apoia a teoria de que os homens são de Marte e as mulheres de Vênus. Em vez disso, ele é uma evidência das ideias propostas pelo filósofo grego Platão e desenvolvidas pelo psiquiatra suíço Carl Jung, que nossas mentes seriam parte masculina e parte feminina".

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

"A chegada" e a difícil comunicação com o Outro

No sensacional filme de ficção científica A chegada, recém-lançado nos cinemas, doze enormes naves espaciais invadem a Terra e "estacionam" de forma aparentemente aleatória em cima de algumas cidades. No entanto, ao contrário do que ocorre em quase todos os filmes de invasão alienígena, os ETs não destroem a Terra nem matam os seres humanos. Suas naves ficam lá paradas e eles não dão o ar da graça, pelo menos inicialmente. Mas é claro que esta "chegada" mobiliza rapidamente governos e exércitos de todo o mundo, que erguem grandes estruturas de monitoramento nas proximidades das naves. Com tais estruturas, os governos pretendem não somente agir no caso de um eventual ataque mas também buscar as respostas para algumas perguntas inquietantes: o que eles querem? Por que vieram à Terra? E por que se mantém em silêncio? Em certo momento, os militares descobrem que durante alguns instantes do dia a nave se abre e os ETs aparecem atrás de uma parede transparente. E é logo após esta descoberta que a linguista Louise Banks é convidada a integrar a equipe composta por vários cientistas. Sua função específica é tentar se comunicar com os ETs e entender porque, afinal de contas, eles vieram à Terra. No entanto, como é de se imaginar, não se trata de uma comunicação simples - da mesma forma como não foi simples a comunicação entre colonizadores e colonizados e como não é simples a comunicação entre pessoas de diferentes países e entre os seres humanos em geral. Superar toda essa Torre de Babel é um desafio de dimensões interplanetárias.

No caso dos ETs, a comunicação é dificultada pelo fato de haver poucas referências em comum entre nós e eles. No caso de uma primeira comunicação entre pessoas que falam línguas distintas é possível buscar elementos no mundo que favoreçam um entendimento mútuo. Imagine, por exemplo, que você queira se comunicar com uma pessoa chinesa mas você não fala ou entende absolutamente nada de chinês. Como você faria? Aposto que inicialmente apontaria para si mesmo(a) e diria seu nome, esperando, assim, que a outra pessoa diga o dela. Em seguida você poderia apontar, por exemplo, para um livro e dizer "livro", esperando com isso que a pessoa nomeie o mesmo objeto em sua língua. A mesma metodologia poderia ser utilizada com diversos outros objetos ou elementos do mundo, o que permitiria um diálogo inicial - um diálogo um tanto simplório, certamente, mas ainda assim um diálogo. Mas como dialogar desta maneira com um ET? Você pode apontar para si  mesmo e dizer seu nome - como a Dra. Banks faz no filme -, mas será: 1) que eles conseguem enxergar e escutar? e 2) que eles possuem nomes? Acho bem possível imaginar uma sociedade, na Terra ou em outro planeta, na qual cada um de seus integrantes não possua um nome individual mas apenas um mesmo nome coletivo, por exemplo (como "os Negan" da série The Walking Dead). Nossa noção ocidental moderna - e terráquea - de individualidade não vale necessariamente para todo o universo, não é mesmo? Da mesma forma, parecem existir poucos elementos do mundo em comum entre humanos e ETs. A linguista poderia apontar para um livro e dizer ou escrever "livro", mas se eles não possuem objetos semelhantes àqueles que chamamos de livros nada disto faria sentido - e o mesmo vale para quase todos os objetos e coisas que pensarmos. Como então dialogar com tais criaturas?

Pois bem, no filme, a primeira tentativa de diálogo adotada pela Dra. Banks é justamente escrever o próprio nome em uma lousa e apontar para si mesma. Curiosamente, isto gera o efeito desejado e as bizarras criaturas, que se assemelham a polvos gigantes, esguicham jatos de tinta preta na parede transparente, formando símbolos arredondados que passam a ser vistos e entendidos como palavras. Mas se são palavras, o que significam? E de que forma tais símbolos se relacionam com os sons emitidos pelas criaturas? A intuição de Banks sobre os primeiros símbolos esguichados pelos Heptapods, como eles passam a ser chamados, é que se refeririam aos nomes dos dois seres que "dialogam" com a equipe - mas poderia ser também que significassem outra coisa. Aos poucos, isto é, a cada contato frente a frente e a cada tentativa de diálogo com os ETs - que parecem realmente dispostos a "conversar" -, a linguista e sua equipe, com a ajuda de alguns programas de computador, acabam por descobrir determinados padrões na linguagem escrita alienígena e isto faz com que o diálogo avance. Banks passa em certo momento a se utilizar da própria linguagem deles para dialogar. Não creio ela tenha se tornado fluente na língua alienígena, mas é possível constatar que a linguista aprendeu o suficiente para que um diálogo de verdade pudesse ocorrer. E com isso ela pôde finalmente compreender os motivos deles. Não entrarei aqui nesta questão e nem explorarei o surpreendente ato final. Gostaria apenas de discutir este complexo processo de comunicação entre a linguista e os ETs que, de certa forma, reproduz as dificuldades de comunicação entre os próprios seres humanos.

Como já comentei em outro post, empatia é a capacidade de nos imaginar no lugar do Outro. Não podemos, de fato, nos colocar no lugar deste Outro; o máximo que podemos fazer é utilizar nossa imaginação para induzir em nossa mente aquilo que acreditamos que outras pessoas (ou seres) sentem. E isto, embora seja algo positivo, aponta para um enorme abismo entre todos nós, pois de fato nunca saberemos exatamente como as outras pessoas se sentem - e nem, efetivamente, se sentem. Só o que fazemos e o que podemos fazer é pressupor, acreditar, imaginar. E nada mais. Isto significa que a angústia ou a alegria que eu sinto não necessariamente são iguais às que você sente, embora nós dois chamemos determinadas sensações mentais e corporais de angústia e alegria. Jamais saberemos de fato. Essa visão de que vivemos uma solidão essencial, caracterizada por este "abismo subjetivo", é chamada pelos filósofos de solipsismo (do latim solus ipse, que significa "um ser sozinho"). Os solipsistas acreditam que não é possível saber se outras pessoas possuem consciência - talvez elas sejam simplesmente robôs ou zumbis que simulam estados conscientes. Só o que podemos saber é que nós próprios somos conscientes e possuímos mentes. A ideia básica dos solipsistas, como sintetiza Eric Matthews no livro Mente: conceitos-chave em filosofia, é que "eu poderia ser o único ser consciente, o único ser com uma mente em todo o universo". Este pensamento, ainda que logicamente faça algum sentido, é efetivamente uma loucura - afinal, quem realmente acredita que nenhuma outra pessoa no mundo seja consciente? De toda forma, o solipsismo aponta para uma certa distância subjetiva entre as pessoas, que seria responsável por muitos dos problemas de comunicação que enfrentamos em nossas vidas. A ideia é que somos, de alguma forma, ETs uns para os outros: nossa forma peculiar de agir, pensar e sentir, ainda que seja construída coletivamente no mundo social, possui uma configuração individual única que dificulta sua apreensão pelas outras pessoas e consequentemente nosso processo de comunicação. E isto significa que embora compartilhemos o mesmo mundo físico, possuimos mundos subjetivos diferentes, o que faz com que passemos grande parte do tempo aprendendo e reaprendendo a nos comunicar uns com os outros. Algumas vezes a distância entre estes mundos diminui e a comunicação ocorre de forma plena; outras vezes - muitas vezes - a distância aumenta e a comunicação deixa de fluir. Como bem afirma Eric Matthews - e como comprova o maravilhoso filme A chegada -  "a comunicação humana, por mais difícil que seja, é ao menos possível de vez em quando".

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O que nos torna humanos? Reflexões a partir da série "Humans" (SEM SPOILERS)

O que nos torna humanos? O que nos diferencia dos outros animais e o que nos diferenciaria de eventuais máquinas pensantes? Com relação aos animais, Aristóteles afirmava que o ser humano é o único "animal político", querendo com isso dizer que somente nós temos a capacidade de pensar e agir racionalmente em prol do bem comum. Já para Descartes a grande diferença é que o homem seria o único dotado de alma. Os outros animais, para o filósofo, não passariam de máquinas desalmadas e, portanto, irracionais. A dor expressa por um cachorro, por exemplo, nada mais seria do que uma espécie de defeito na máquina. Após Darwin, o entendimento sobre o que nos diferencia dos outros animais se alterou consideravelmente, pois passou-se a entender tais diferenças como sendo de grau e não mais de qualidade ou natureza. O cérebro e, como consequência, a mente humana, da mesma forma que todo o nosso corpo, seriam, nesse sentido, frutos da evolução por seleção natural. E isto significa que nossas características mais peculiares também podem ser encontradas, em alguma medida, nos outros animais - e é esta proximidade que, de alguma forma, justifica e, por outro lado, torna problemática a utilização de animais para fins científicos. Nossa linguagem, por exemplo, nos faz realmente únicos, mas isto não significa que estejamos totalmente sozinhos neste quesito. Outros animais, como cachorros, golfinhos e macacos, também possuem sistemas de comunicação - menos elaborados que o nosso, certamente, mas que lhes permitem atingir determinados fins. Da mesma forma, me parece consensual ou pelo menos majoritário entre os cientistas contemporâneos o entendimento de que outros animais possuem emoções, memórias e inteligência, embora em menor complexidade do que nos seres humanos.

No entanto, para além de tudo que nos distancia, de fato compartilhamos com todos os outros animais a "posse" um corpo biológico dotado de uma anatomia e uma fisiologia assim como de determinados sentidos que permitem sejamos afetados pelo mundo e o afetemos. Como os animais e também as plantas e os fungos, somos seres biológicos - certamente não nos reduzimos a esta biologia, mas sem ela não seríamos quem somos e não faríamos o que fazemos. Como seria, então, se criássemos máquinas inteligentes com aparência humana? No que nos diferenciaríamos de tais "criaturas" não-biológicas? A série Humans, fantástica produção inglesa lançada em 2015, traz algumas respostas para estas perguntas - mas fique tranquilo, não revelarei nada de significativo sobre a série. No mundo retratado em Humans, que se passa em uma Londres ao mesmo tempo futurista e atual, humanos e sintéticos, como são denominadas as máquinas humanizadas, convivem de forma relativamente pacífica. Isto porque os sintéticos, também chamados de synths, embora sejam capazes de realizar inúmeras atividades desempenhadas anteriormente por seres humanos - especialmente aquelas mais degradantes e perigosas -, não possuem consciência de si e do mundo. Apenas agem automaticamente a serviço do homem. Os synths não possuem autonomia; são meramente "escravos". A grande questão é que um de seus criadores decidiu ir além e acabou por criar um grupo androides conscientes. O que ele fez, em suma, foi desenvolver uma verdadeira inteligência artificial, como ainda não possuímos e talvez nunca possuiremos. Tais sintéticos tem a capacidade não somente de agir como seres humanos mas também de pensar e sentir de forma aproximada à nossa. E isto significa, então, que o cientista criou seres humanos não-biológicos? Ou não são seres humanos, apenas máquinas que simulam os comportamentos, pensamentos e sentimentos humanos? De toda forma, no que estes seres ou coisas se assemelham e no que se diferenciam de nós?

Uma primeira e mais elementar resposta para esta última pergunta é que não sendo seres biológicos, os sintéticos jamais vivenciariam muitas das coisas que fazem parte da vida cotidiana de todos os seres humanos e de muitos seres vivos. Por não possuírem um corpo biológico, eles nunca sentiriam fome e nunca precisariam se alimentar - na série, eles precisam apenas serem carregados em uma tomada. Da mesma forma, por não se alimentarem, não haveria qualquer processo de digestão e nunca precisariam defecar ou urinar. Eles também nunca sentiriam dor de barriga ou qualquer outra dor interna, pois não possuiriam órgãos - na série, somente os sintéticos conscientes sentem dor e apenas quando lesionam a pele. Eles também não precisariam e provavelmente não poderiam tomar banho ou realizar qualquer ritual de higiene - no máximo, talvez, passar um perfuminho para agradar aos humanos. Também não poderiam beber qualquer líquido e, por isso, jamais experimentariam a embriaguez - na série, uma sintética que se disfarça de humana usa uma bolsa dentro da garganta para que possa "beber" e "comer" em situações sociais; no entanto ela bebe horrores e jamais fica bêbada. Da mesma forma, dificilmente veríamos um sintético vomitando, arrotando, soluçando ou peidando, ações absolutamente cotidianas para qualquer ser humano. Além disso, um ser não-biológico não precisaria, ainda que pudesse, fazer sexo ou se masturbar e jamais ejacularia de prazer, ainda que possuísse algum fluido corporal artificial. Também não poderia engravidar e jamais teria filhos "naturais". Mas não só: por ter sido fabricado e não nascido como um bebê, um sintético não cresce, não envelhece e não morre - uma máquina certamente pode ser desligada ou danificada mas suas peças podem ser trocadas e o dano reparado, exceto talvez, em casos de perda total. E por não morrer "naturalmente", provavelmente não teria medo da morte, algo absolutamente essencial na vida humana. Enfim, não ser uma criatura biológica certamente traz alguns benefícios, mas também uma série de prejuízos. O que se ganha em durabilidade, por exemplo, se perde em humanidade. Como chamar de humano um ser que não come, não bebe, não caga, não mija, não goza, não se embriaga, não fica doente, não envelhece e não morre? Um ser como esse, pode até se parecer fisicamente conosco; pode até possuir uma inteligência superior à nossa e executar cálculos e raciocínios com muito mais rapidez; pode até dispor uma memória extraordinária e até mesmo sentir determinadas emoções. Mas ainda faltará muito para que tal criatura se torne integralmente um ser humano.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

"O experimento de Milgram" e a psicologia social no cinema

Experimentos do campo da psicologia social já foram retratados algumas vezes no cinema. A clássica experiência da "prisão de Stanford" - que colocou 24 voluntários em uma prisão simulada dentro da Universidade de Stanford, sendo doze caracterizados como prisioneiros e doze como guardas - inspirou pelo menos três filmes: o alemão A experiência (no original Das experiment, 2001), a fraca versão norte-americana Detenção (no original The experiment, 2010) e, mais recentemente, o também norte-americano O experimento de aprisionamento de Stanford (no original The Stanford Prison Experiment, 2015). Embora todos estes filmes sejam inspirados no experimento original realizado em Agosto de 1971 pelo psicólogo Phillip Zimbardo, somente o último pretende-se fiel aos acontecimentos. Os dois primeiros extrapolam os fatos reais tentando imaginar o que teria acontecido se o experimento de aprisionamento tivesse durado mais do que seis dias, como de fato durou (o experimento real teve de ser interrompido antes do prazo previsto de duas semanas devido à alguns episódios de violência entre presos e guardas). Existem ainda outros filmes que retratam experiências relevantes para o campo da psicologia social, ainda que não tenham sido conduzidas propriamente por psicólogos. Um deles é o documentário Olhos azuis (no original Blue eyed, 1996), que retrata a impactante intervenção sobre racismo e preconceito conduzida pela socióloga Jane Elliot. O outro é assustador filme alemão A onda (no original Des welle, 2008), que ficcionaliza um experimento real sobre o nazismo realizado pelo professor de história Ron Jones em uma escola da cidade de Palo Alto, nos EUA. 

Pois a mais recente produção a retratar uma experiência do campo da psicologia social é o filme Experimentos (no original Experimenter, 2015). Escrito e dirigido por Michael Almereyda, o filme retrata a vida e o trabalho do famoso psicólogo social Stanley Milgram, com destaque para o controverso experimento sobre obediência à autoridade conduzido por ele na década de 1960. O título original do filme, Experimenter, seria melhor traduzido por Experimentador, mas a distribuidora brasileira preferiu intitulá-lo de Experimentos, sugerindo, desta forma, que o filme não trata apenas de um experimento mas de vários - e de fato, inúmeros experimentos conduzidos por Milgram ao longo de sua carreira, assim como por colegas como Solomon Asch, são retratados. De uma forma geral, o filme é péssimo: o roteiro é muito mal construído, a estratégia de colocar Milgram falando para a câmera é terrível e não parece ter outro propósito além de mastigar o conteúdo para o público, os atores principais (que incluem Peter Sarsgaard como Milgram e Winona Ryder como sua esposa Sasha), apesar de bons em outras produções, aqui não conseguem empolgar e os cenários em geral são absolutamente toscos - isto para não falar da nada sutil propaganda da Coca-Cola presente em diversas cenas. Certamente, grande parte desses problemas se devem ao baixo orçamento do filme, mas isto de forma alguma justifica as terríveis escolhas do roteiro e direção. Ainda assim, apesar de tudo isso, o filme vale a pena ser visto - por um simples motivo: os experimentos que ele retrata, com bastante fidelidade, são fascinantes e deviam ser mais conhecidos pela população. Retratá-los em um filme certamente contribui para que isto aconteça.

Pois bem, imagino que você já tenha ouvido falar do controverso experimento de Milgram sobre obediência à autoridade. Se não for o caso - e mesmo se for - gostaria de explicar brevemente como ele foi conduzido, o que no filme é retratado com maiores detalhes. Em primeiro lugar, um "experimentador", vestido com um jaleco, conduzia dois sujeitos, supostamente voluntários, para uma sala e explicava para eles como iria funcionar o experimento. Ele lhes dizia, enganosamente, que se tratava de uma investigação sobre a influência da punição sobre o aprendizado e que um deles iria atuar como "professor" e o outro como "aluno". O "aluno" (L na imagem) ficaria atrás de uma parede, incomunicável com o "professor" (T), respondendo determinadas questões de múltipla escolha através de um painel. A cada erro cometido, o professor deveria aplicar um choque no aluno, sendo uma voltagem mais alta a cada erro. A grande sacada/sacanagem do experimento é que o "aluno" era um ator contratado por Milgram que, de fato, não recebia choque algum, apenas fingia recebê-lo. Desta forma, na medida em que as punições iam sendo aplicadas, o aluno/ator dava alguns gritos,  demonstrando que não estava bem e que queria sair logo dali - o que era ouvido pelo "professor". Em alguns momentos, o aluno ficava quieto, parecendo ter desmaiado ou morrido. Comumente, o "professor" demonstrava preocupação  e desconforto para o "experimentador" (E), que ficava logo atrás. No entanto, o experimentador era instruído a falar simplesmente: "você deve continuar" ou então "você não tem escolha". E grande parte das pessoas, cerca de 65%, continuou até o fim, até a mais alta voltagem ser supostamente aplicada no aluno. Poucos, muito menos do que imaginava e mesmo desejava Milgram, resistiram à autoridade do experimentador e ao fato deste se colocar como responsável por tudo o que acontecesse com o "aluno".

Stanley Milgram (1933-1984)
Milgram, que nasceu em 1933, era filho de pai húngaro e mãe romena, ambos judeus, que imigraram da Europa para os Estados Unidos fugindo do nazismo em ascenção e se estabeleceram em Nova Iorque. Sua história familiar foi decisiva para a criação deste experimento. A grande questão que intrigava Milgram era como o ser humano foi (e é) capaz de contribuir diretamente com atos atrozes e desumanos, como foi o caso do Holocausto. Olhando para a câmera, Milgram afirma no filme: "é isso o que está por trás dos experimentos de obediência. O pressentimento de que eu estava perseguindo o que mais me incomodava. Como seres humanos civilizados participam de desumanos atos de destruição? Como o genocídio foi implementado tão sistematicamente, de forma tão eficiente? E como os autores destes assassinatos conseguiram viver com suas consciências?". Outra questão que perseguia Milgram era: é possível não obedecer à autoridade? É possível resistir? Embora grande parte das pessoas continuasse o experimento, apesar do desconforto de estarem supostamente causando dor a outro ser humano, alguns resistiram. No filme é retratada a situação de um engenheiro elétrico holandês, que já sentira a dor de um choque e, por isso, se recusa a continuar. O experimentador, como de praxe, afirma que ele não tem escolha, ao que o sujeito rebate: "Por que eu não tenho escolha? Eu vim aqui por vontade própria. Pensei que poderia ajudar em um projeto de pesquisa. Mas se tiver que ferir alguém, se eu estivesse no lugar dele... Não, não posso continuar. Provavelmente já fui longe demais. Sinto muito". Ele resistiu, em grande medida, porque sentiu empatia com o "aluno" - e ele o sentiu porque já experimentou como é levar choques, o que não é o caso de muitos. Enfim, não é nada simples resistir. É muito mais fácil ceder à autoridade, abrindo mão da própria responsabilidade, e continuar causando dor a uma outra pessoa. É muito mais "normal" e esperado, agir como Adolf Eichmann, funcionário do sistema nazista, que teria dito durante seu julgamento - em uma tentativa de justificar suas ações - que "eu nunca fiz nada grande ou pequeno sem instruções expressas de meus superiores" (tal julgamento é tema do maravilhoso filme Hannah Arendt). Esta "banalidade do mal", segundo expressão de Arendt, parece ser, infelizmente, a norma. No entanto, como conclui Milgram no filme, dirigindo-se diretamente ao público, "você poderia dizer que somos marionetes. Mas eu acredito que somos marionetes com percepção, com consciência. Às vezes, podemos ver os cordões e, talvez, a nossa consciência seja o primeiro passo para nossa libertação". Que somos profundamente influenciados pelo contexto e pelas circunstâncias, disto não há dúvida - a psicologia social já demonstrou isto de inúmeras formas ao longo dos anos. A grande questão, ainda não resolvida, é se (e como) podemos resistir e agir autonomamente.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Medicina sem glamour: reflexões sobre o livro "Sem causar mal" e o filme "Sob pressão"

O curso de medicina é, disparado, o mais concorrido no Sisu - como era, anteriormente, em todos os vestibulares. É o curso mais desejado, não só no Brasil como em todo o mundo. Isto se deve, sem dúvida, a muitos fatores - como a tradição, o status, o mercado de trabalho, etc - mas eu gostaria de destacar um fator em especial: a visão extremamente idealizada da profissão médica disseminada pela mídia. Os médicos normalmente são retratados nos noticiários, novelas, séries e filmes como super-heróis, como pessoas poderosas, destemidas e infalíveis que, na batalha diária entre a vida e a morte, normalmente derrotam a morte e salvam vidas. Isto não deixa de ser verdade, claro - e longe de mim pretender falar da "realidade" da profissão médica, haja vista que em todas as profissões coexistem diversas realidades muito distintas entre si - mas certamente existe um lado B da profissão, um aspecto mais trágico e menos glamouroso, que raramente é retratado pela mídia. Pois este ano foram lançadas no Brasil duas obras que expõem algumas das feridas da profissão médica - especialmente do ramo da cirurgia - e que acabam por expor também os dilemas e limites dos sistemas de saúde.

A primeira obra que gostaria de indicar e comentar é o aclamado livro Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia, escrito pelo neurocirurgião inglês Henry Marsh, um dos mais conceituados e experientes profissionais desta especialidade cirúrgica na Inglaterra. O livro tem início com uma frase maravilhosamente trágica do médico René Leriche (1879-1955) segundo o qual "todo cirurgião traz dentro de si um pequeno cemitério, onde, de tempos em tempos, ele vai orar. É um lugar de amargura e arrependimentos, onde ele deve procurar uma explicação para os seus fracassos". A frase se encaixa perfeitamente à proposta do livro que é justamente escancarar o cemitério que Marsh carrega dentro de si e que inclui inúmeros erros e arrependimentos. Como se estivesse em um confessionário (ou em um divã), March expõe com muita sensibilidade todas as dores, mas também algumas delícias, de ser um neurocirurgião. De fato não se trata de um trabalho fácil; pelo contrário, não consigo imaginar tarefa mais desafiadora do que operar um órgão tão sensível e complexo como o cérebro humano, "o misterioso substrato de todo pensamento e sensação, de tudo o que é importante na vida humana" como ele próprio define. O grande problema das cirurgias no cérebro segundo Marsh é que "mesmo se houver um pequeno acidente, as consequências podem ser catastróficas". E o que não faltam no livro são histórias de pequenos acidentes com consequências catastróficas. Em uma cirurgia cerebral, qualquer erro, por mais ínfimo que seja, pode deixar a pessoa cega, paralizada ou até mesmo matá-la - o que se contrapõe diretamente ao Juramento de Hipócrates segundo o qual o médico deve, em primeiro lugar, "não causar mal" (daí o título do livro). Certamente os pacientes, em grande parte vítimas de terríveis tumores, precisam confiar no médico e acreditar que ele é um super-herói infalível, mas de fato ele é humano e como tal, está sujeito a erros. Marsh, nesse sentido, admite que errou muito ao longo de suas mais de três décadas como neurocirurgião. Como afirma em certo momento, "eu trouxe a felicidade a muitos pacientes com operações bem-sucedidas, mas houve também muitos fracassos terríveis. E a vida dos cirurgiões é pontuada por períodos de desespero profundo". Na mesma direção, o autor aponta que "cirurgiões tem dificuldade de admitir erros, tanto para si quanto para os outros, e há toda sorte de maneiras com as quais eles disfarçam seus erros e tentam colocar a culpa em outros fatores". Marsh, agora já no fim de sua carreira, já não quer mais agir desta forma e prefere encarar de frente os erros do passado que ainda lhe assombram. Seu livro talvez seja, neste sentido, uma tentativa de expiação destes fracassos - uma bela e sensível tentativa, eu acrescentaria. Um dos melhores livros do ano!

Já a segunda obra sobre a qual gostaria de trazer algumas reflexões é o filme Sob pressão, nova produção do diretor Andrucha Waddington (o mesmo dos maravilhosos Eu, tu, eles e Casa de Areia). O filme acompanha um dia no trabalho de uma equipe médica de um hospital público situado em uma favela do Rio de Janeiro. A equipe da chamada Unidade Vermelha, setor de emergência do hospital, é chefiada pelo cirurgião Evandro (vivido com intensidade pelo ator Júlio Andrade) e inclui também um anestesista, uma médica novata e mais dois residentes. O filme tem início com Evandro saindo momentaneamente do hospital para tomar seu café da manhã após uma longa noite de trabalho quando um tiroteio começa do outro lado do morro. Instantes depois chega uma ambulância trazendo dois sujeitos gravemente feridos na troca de tiros: um é policial e o outro é bandido. Junto com a ambulância chega também no hospital o capitão da PM, que pressiona fortemente o médico para que ele trate o policial e deixe o bandido morrer (agora você já sabe a inspiração para a polêmica enquete do Programa da Fátima Bernardes). Tal pressão deixa Evandro furioso. Ali dentro do hospital, vocifera o médico, quem manda é ele; é ele quem faz as escolhas; é ele quem decide que será tratado primeiro e quem terá de esperar - pois de fato as condições do hospital são tão precárias, tanto em termos de equipamento quanto de pessoal, que não há como cuidar de todos ao mesmo tempo. E no meio desta confusão chega ao hospital mais um sujeito baleado, desta vez um garoto filho de um poderoso dono de jornal. Tudo ao mesmo tempo e agora. No restante do filme os médicos correm de um lado para o outro, brigam entre si e fazem cirurgias complexas na mais completa precariedade, enfim, "se viram nos 30" com quase nada - e tudo isso sob uma imensa pressão dos pacientes, dos familiares, dos policiais, dos traficantes, da administração do hospital, etc. É tanta pressão e precariedade que eu passei o filme todo me perguntando: como eles aguentam esta rotina de guerra dia após dia, meu deus? Enfim, esqueça aquelas séries norte-americanas de hospital - como Grey's Anatomy, House ou E.R.  - nas quais médicos esbeltos, cheirosos e descansados trabalham junto a equipes numerosas em locais assépticos e equipados. Na realidade infernal exposta em Sob pressão - que retrata de forma bastante fiel o trabalho de muitos médicos no Brasil - não há beleza, glamour ou status. Há trabalho duro, escolhas difíceis, noites insones e muita, mas muita pressão.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Doutor Estranho: a mente entre a matéria e o espírito

O filme Doutor Estranho, nova produção da Marvel, conta a história do competente e arrogante neurocirurgião Stephen Strange - ou melhor, Doutor Stephen Strange, como ele sempre afirma - que sofre um terrível acidente de carro e tem os nervos de suas mãos, essenciais para seu ofício, gravemente lesionados. Desesperado e ansioso para voltar a trabalhar, Strange recorre a todos os procedimentos possíveis na medicina ocidental: passa por diversas cirurgias, faz fisioterapia e toma medicações. Tudo em vão. Até que certo dia ele fica sabendo de um sujeito, chamado Jonathan Pangborn, que teria se recuperado completamente de uma séria e debilitante lesão medular. Strange decide procurá-lo e este lhe afirma que sua cura teria sido ocasionada por uma "intervenção" realizada em um local denominado Kamar-Taj. E como não tinha mais nada a perder, pois já havia perdido sua principal fonte de subsistência e realização pessoal, isto é, seu trabalho, Strange vende todos os seus bens e viaja até a cidade de Katmandu no Nepal em busca deste local misterioso - que acaba encontrando depois de um tempo. E descobre que trata-se de um templo sagrado onde vivem um grupo de monges dedicados a proteger o universo das forças do mal. Mas logo que adentra o templo, Strange ainda não sabe de nada disso e pensa que se trata de uma espécie de clínica onde espera receber algum tipo de tratamento experimental para seu problema. No entanto, assim que encontra a Anciã descobre que o tal "tratamento" não é nada daquilo que ele imaginou. O primeiro diálogo entre eles, que reproduzo integralmente abaixo, é bastante interessante e ilustrativo de uma discussão que farei em seguida sobre a natureza da mente.

Anciã: Você passou por muitos procedimentos. Sete, certo?
Strange: Sim.... E você curou um homem chamado Pangborn? Ele era paralítico.
- De certo modo.
- Ajudou-o a andar de novo.
- Sim.
- Como corrigiu uma fratura completa na [vértebra] C7 e C8?
- Eu não corrigi. Ele não conseguia andar. Convenci-o que conseguia.
- Você não está dizendo que era psicossomático, não é?
- Quando você reconecta um nervo cortado, quem o cura é você ou o corpo?
- As células.
- E elas são programadas para se juntarem de maneira muito específica.
- Isso mesmo.
- E se eu dissesse que seu corpo poderia ser convencido a se ligar de todas as formas possíveis.
- Você está falando de regeneração celular. Isso é tecnologia médica de ponta. Por isso trabalha aqui, sem uma junta governamental? Digo... quão experimental é seu tratamento?
- Um pouco.
- Então descobriu um modo de reprogramar as células nervosas para se curarem?
- Não, Sr. Strange. Sei como reorientar o espírito para uma melhor cura corporal. (...)
- [Irritado] Eu gastei o meu último centavo para vir aqui. Uma passagem só de ida e está falando de cura através de fé?
- [Você] é um homem que olha o mundo por uma fechadura...e passou a vida tentando expandir essa fechadura.Ver mais, saber mais. E agora, sabendo que pode fazê-lo, de maneiras que não pode imaginar... você rejeita a possibilidade?
- Estou rejeitando pois não creio em historinhas sobre chakras, energia ou poder da fé. Não existe essa coisa de espírito! Somos feitos de matéria, nada mais. Você só é uma partícula minúscula e temporária em um universo indiferente.

Logo após Strange dizer isso, a anciã lhe dá um forte empurrão que faz com que sua alma saia de seu corpo e o veja de cima. Em seguida a alma de Strange faz uma alucinante e psicodélica viagem para outros mundos e universos incrivelmente surreais - as imagens desta primeira "viagem" são fantásticas! E logo após ele voltar ao seu corpo, embasbacado com a experiência, a Anciã lhe explica que "na raiz da existência, mente e matéria se encontram" e que "os pensamentos moldam a realidade". A partir deste momento Strange adere sem mais questionamentos à filosofia de sua, agora, mestre. Pois bem, o que acho muito interessante neste primeiro diálogo entre a Anciã e Strange é que ele traz à tona um "conflito" ao mesmo tempo antigo e atual sobre a natureza da mente. Em um pólo deste conflito nós temos os materialistas ou fisicalistas, para quem tudo o que existe - inclusive a mente - é puramente material ou físico. A mente é o cérebro, afirmam. Para os adeptos desta corrente monista, majoritária no campo científico contemporâneo, não existe alma ou espírito assim como não existem anjos, deuses ou demônios. No outro pólo deste "conflito" nós temos os anti-materialistas ou pós-materialistas, para quem a realidade - incluindo a mente - não se reduz à matéria. A mente não é o cérebro, afirmam. Para os adeptos desta corrente dualista (que inclui os espiritualistas), embora a mente se relacione com cérebro e dependa dele de alguma maneira, "ela" não pode ser reduzida a "ele". Mente e cérebro seriam substâncias ou propriedades distintas. Certamente, entre estas duas posições extremas é possível encontrar muitas outras visões intermediárias sobre a natureza da mente, mas para os propósitos deste post tal divisão, ainda que artificial, é suficiente.

Os cientistas contemporâneos tendem a ser majoritariamente materialistas por acreditarem que esta perspectiva, entendida como fato, é o "resultado natural e inevitável do avanço das investigações científicas", como afirma o pesquisador Saulo Araújo. Creem, assim, que quem é cientista "de verdade" só pode ser materialista. No entanto, isto não passa de uma falácia. Em seu livro Psicologia e Neurociência: uma avaliação da perspectiva materialista no estudo dos fenômenos mentais, Araújo expõe de uma forma bastante clara os motivos pelos quais esta afirmação não é correta. Em primeiro lugar, porque o materialismo não é propriamente uma tese científica, mas uma tese metafísica, geral e abrangente, que, como tal, não pode ser testada empiricamente. Nenhum experimento científico teria como comprovar o materialismo ou, pelo contrário, refutar o anti-materialismo. Neste sentido, a expressão ‘materialismo científico’ não passaria de uma posição ideológica ou uma designação do status profissional de seus adeptos, os cientistas, o que leva o autor a concluir que “ciência e materialismo são coisas distintas, que só por um deslize conceitual podem ser tratadas como idênticas”. Em segundo lugar, o materialismo não é, de fato, uma tese nova, tendo aparecido sob diferentes formas no decorrer da história do pensamento ocidental - Araújo aponta, neste sentido, para um eterno retorno do materialismo

Finalmente, reforçando ainda mais o primeiro motivo, está o fato de que existe um significativo número de cientistas anti ou pós-materialistas e até mesmo espiritualistas - e isto não faz deles cientistas piores ou menores necessariamente. Um marco bastante significativo da existência de um movimento anti-materialista no âmago do mundo científico foi a publicação em 2014 do Manifesto por uma ciência pós-materialista, assinado por mais de cem cientistas de diversas áreas do conhecimento de todo o mundo. Neste importante documento (traduzido aqui), os cientistas criticam de forma veemente a forma dogmática com que a crença no "materialismo científico" tem sido defendida por muitos cientistas. Segundo eles, "este sistema de crença prega que a mente nada mais é que fruto da atividade cerebral  e que nossos pensamentos não podem ter qualquer efeito sobre nossos cérebros e corpos, nossas ações e nosso mundo físico". Em contraponto a esta visão, os cientistas pós-materialistas defendem que "a mente representa um aspecto da realidade tão primordial quanto o mundo físico"  e que "há uma profunda inter-conectividade entre a mente e mundo físico". Alertam ainda que o pós-materialismo não exclui a matéria, mas também não se limita a ela. Enfim, o que este manifesto aponta e defende é que o materialismo não é a única forma de se enxergar o mundo, de se conceber a mente ou de se fazer ciência. É apenas uma narrativa possível, dentre muitas outras. Diferentes visões, inclusive as anti-materialistas devem ter espaço e serem levadas em consideração e não simplesmente descartadas como sendo anti-científicas. E tudo isto significa que tanto a visão materialista defendida inicialmente pelo Doutor Strange quando a visão anti-materialista e espiritualista defendida pela Anciã podem coexistir, sem que uma necessariamente se sobreponha ou anule a outra. Tais visões não passariam, neste sentido, de diferentes atos de fé.

Update 21/11/2016: uma outra discussão bastante interessante apresentada pelo filme é aquela que contrapõe duas visões sobre a morte. De um lado temos o "vilão" Kaecilius, um defensor ardoroso da imortalidade, que seria obtida ao entregamos o domínio do nosso mundo para o líder da Dimensão Negra Dormammu. No primeiro diálogo com Strange, Kaecilius deixa bastante claro sua visão sobre a morte. Leia a seguir, na íntegra:

Kaecilius: Diga-me, Mestre...
Strange: Olhe, meu nome é Doutor Stephen Strange.
- É um doutor? Um médico, um cientista. Você entende as leis do Universo. Tudo envelhece. Tudo morre. No final, nosso Sol se extingue. Nosso Universo esfria e perece. Mas a Dimensão Negra é um lugar além do tempo... Este mundo não tem de morrer, Doutor. Ele pode tomar seu lugar junto a tantos outros. Como parte de um todo. Um todo grandioso e belo. Podemos todos viver para sempre
- Sério? O que você ganha com essa utopia de Nova Era?
- O mesmo que você e todo mundo. Vida. Vida eterna. As pessoas pensam em termos de bem e mal, mas na verdade o tempo que é nosso inimigo real. O tempo mata tudo.
- E as pessoas que você matou?
- Não são nada. Ciscos momentâneos em um Universo indiferente. Sim, você entende. Você entende o que estamos fazendo. O mundo não é o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do tempo, pois o tempo nos escraviza. O tempo é um insulto. A morte é um insulto. Doutor, Não queremos governar este mundo. Queremos salvá-lo e entregá-lo a Dormammu que é o ápice de toda evolução. A razão principal por existirmos. A Maga Suprema defende a existência. O que levou você a Kamar-Taj, Doutor? Esclarecimento? Poder? Você foi para ser curado, assim como todos nós. Kamar-Taj é um lugar que acolhe os problemáticos. Todos fomos com a promessa de cura, mas, ao invés disso, a Anciã nos deu truques baratos. A magia de verdade ela guarda para si mesma. Já se perguntou como ela pôde viver tanto?
- Não. Vi os rituais no Livro de Cagliostro.
- Então você sabe. O ritual me deu o poder para derrubar a Anciã e destruir os Sanctums dela. Para que venha a Dimensão Negra. Pois o que a Anciã esconde, Dormammu compartilha. A vida eterna. Ele não é o destruidor de mundos, Doutor. Ele é o salvador. 

 
Do outro lado, temos a "mocinha" da história, a Anciã, que é uma forte defensora da mortalidade, embora ela própria seja imortal. Segundo ela é "a morte é que dá sentido à vida". Se não morrêssemos, jamais nos preocuparíamos em dar significado e valor à nossa existência. É a inevitabilidade de nossa finitude que faz com que busquemos preencher os nossos dias da melhor forma possível. O que acho bastante interessante no filme é que ele inverte a lógica tradicional ao colocar como vilão um sujeito que defende a imortalidade e como "mocinha" uma mulher que embora seja tão espiritualista como o vilão, defende a importância da morte para a vida.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O que os filmes e séries nos ensinam sobre a memória e o esquecimento?

1ª Lição: Existem diversos tipos de memória e de esquecimento. Há muitas décadas psicólogos cognitivos e neurocientistas defendem a ideia de que os seres humanos possuem diversos tipos de memória assim como diversos tipos de esquecimento ou amnésia. Uma divisão básica é aquela que diz respeito à duração da memória. Os psicólogos falam, neste sentido, em memórias de trabalho ou sensoriais, que são aquelas que duram apenas alguns poucos segundos, em memórias de curto prazo, que permanecem por horas e dias, e também em memórias de longo prazo, que se mantém por décadas. Falam também em memória implícita ou não-declarativa, que se refere à "lembrança" de atividades automatizadas como andar de bicicleta ou escovar os dentes, e em memória explícita ou declarativa, que diz respeito à lembrança de fatos e eventos específicos (memória episódica) assim como de palavras e conceitos (memória semântica). Da mesma forma, os psicólogos postulam - e diversos casos clínicos comprovam - a existência de pelo menos três tipos de amnésia. A chamada amnésia anterógrada diz respeito à incapacidade de adquirir novas informações após um trauma ou lesão. Neste caso, são as memórias de curto prazo que são afetadas, mas não as de longo prazo. No caso da chamada amnésia retrógrada, acontece o oposto: as memórias de curto prazo permanecem intactas e o sujeito consegue adquirir novas informações, mas as memórias mais antigas, anteriores ao momento da lesão, se desfazem. Finalmente, existiria uma amnésia global, em que tanto as memórias de curto quanto as de longo prazo ficariam comprometidas - isto acontece, por exemplo, com pessoas em estágio avançado da Doença de Alzheimer. 

Título original de Apagados: Embers
Mas e quanto aos filmes? Pois bem, existem inúmeras obras cinematográficas que retratam situações de esquecimento e com isso reiteram a compreensão de que existem diversas formas de esquecer. Pense, por exemplo, no fascinante Amnésia (2000), no divertido Como se fosse a primeira vez (2004) ou então no assustador Apagados (2016) - e eu não poderia me esquecer da simpática personagem Dory de Procurando Nemo (2003) e Procurando Dory (2016). Em todos estes casos, os personagem possuem amnésia anterógrada, o que significa que não conseguem reter novas informações. No caso de Amnésia e Como se fosse a primeira vez, a patologia é desencadeada por um trauma - no primeiro devido a uma lesão decorrente de um assalto e no segundo devido a um acidente de carro. Já no caso de Apagados, que retrata um mundo pós-apocalíptico no qual uma infecção teria acabado com a capacidade de memorização dos seres humanos, trata-se efetivamente de uma amnésia global, já que os personagens não retém memórias recentes e também não se lembram de nada do seu passado - e nem de quem são, o que é ainda mais assustador. Na verdade, se observarmos com atenção, o que a infecção teria causado aos humanos seria uma perda da memória explícita, já que os personagens se lembram, por exemplo, de como andar de bicicleta ou cortar lenha. Aliás, a fala de um personagem do filme (que não possui nome, como todos os outros) ilustra bem como funciona a memória implícita ou não-declarativa: "Se você me perguntasse se eu sei cortar lenha, eu não saberia dizer. Mas você põe um machado na minha mão e eu sei cortar lenha", ele diz para um outro personagem. Pois é assim mesmo que funciona a memória implícita: depois que aprendemos alguma habilidade, passamos a executá-la de modo tão automático que comumente nos esquecemos como e em que contexto a aprendemos.

Eu não mencionei acima, mas existem inúmeros filmes que retratam pessoas com a Doença de Alzheimer e outros tipos de demência, cujos primeiros sintomas normalmente incluem falhas na aquisição de novas informações, ou seja, na memória de curto prazo. Veja, por exemplo, os filmes Para sempre Alice (2014), Longe dela (2006), Diário de uma paixão (2004), Família Savage (2007), Iris (2001), O filho da noiva (2001), Poesia (2010) ou Alive Inside (2014). Em todos esses casos é possível observar que os sujeitos afetados por uma demência vão perdendo gradualmente a memória: em um primeiro momento apresentam dificuldades na memória de curto prazo e posteriormente perdem até mesmo as de longo prazo. Em alguns casos, chegam até mesmo a se esquecer quem são - como é o caso dos personagens do filme Apagados.

Existem ainda outros filmes que retratam casos de amnésia retrógrada. Veja por exemplo Identidade Bourne (2002), Cine Majestic (2001), Cidade dos sonhos (2001), Na noite do passado (1942), Busca mortal (1991) ou O homem sem passado (2001). Em todas essas obras os personagens, após sofrerem algum tipo de acidente, perdem as memórias do passado e comumente se esquecem de quem são - mas continuam retendo novas informações. Eu não poderia deixar de citar também os filmes Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) e O pagamento (2003). No primeiro filme, um clássico contemporâneo, o protagonista procura uma empresa chamada Lacuna para que esta apague de seu cérebro todas as memórias de sua ex-namorada (que já havia passado anteriormente pelo mesmo procedimento) - ou seja, ele espera que a empresa lhe cause uma amnésia retrógrada específica, apagando as memórias associadas a seu antigo amor. Já no filme O pagamento, o protagonista é um engenheiro da computação que é constantemente contratado por grandes empresas para trabalhar em projetos secretos. E sempre que finaliza tais projetos,  ele passa por um processo onde parte de sua memória de curto prazo é apagada para evitar que informações sigilosas vazem. Neste caso, da mesma forma que no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, o protagonista é  submetido a uma amnésia retrógrada específica, referente a certas memórias ou a certo período de tempo.

Cena do episódio 01x03 da série Black Mirror
2ª Lição: Nossas lembranças não são exatas e não funcionam como as memórias de um computador. No livro Os sete pecados da memória, o psicólogo Daniel Schacter aponta para sete características da memória humana - ou "sete pecados", como ele designa: 1) Transitoriedade: a memória tende a se deteriorar e enfraquecer ao longo do tempo, o que significa que lembramos melhor de eventos recentes do que de eventos antigos; 2) Distração: se não prestamos atenção ou somos distraídos por algo diminuímos nossa capacidade de memorizar determinada informação; 3) Bloqueio: por vezes bloqueamos determinadas memórias - um exemplo é o chamado fenômeno da ponta da língua; 4) Atribuição equivocada: ocorre quando atribuímos determinada lembrança a uma fonte ou contexto errado, ou seja, quando misturamos memórias; 5) Sugestionabilidade: capacidade que temos de ter nossas memórias influenciadas e manipuladas pela ação de outras pessoas (não exatamente como no filme Cidade das sombras, mas de maneiras mais sutis); 6) Distorção: ocorre quando modificamos nossas memórias, transformando-as em algo diferente das situações vividas originalmente; 7) Persistência: capacidade que nossa mente tem de recordar repetitivamente informações ou eventos perturbadores que preferiríamos esquecer. Tais "pecados", especialmente a transitoriedade, a atribuição equivocada, a sugestionabilidade e a distorção nos lembram que nossa memória não funciona como a memória de um computador. Pense bem: se você salvar um arquivo em seu notebook e abri-lo novamente daqui a 10 anos, muito provavelmente você encontrará as mesmas informações contidas no arquivo original. Nada se alterará. Aliás, como questiona um personagem crítico das supostas inteligências artificiais na fantástica série Humans (2015) "como se ensina um computador a esquecer?". A resposta: não se ensina. Computadores não esquecem e esta é uma significativa diferença "deles" para nós. Nossa memória não funciona desta forma. Após você viver determinada experiência, suas memórias serão continuamente enfraquecidas e modificadas ao longo dos anos, o que significa que lembrar-se de algo vivido há uma década dificilmente corresponderá com exatidão à experiência real vivida. Isto ocorre porque a cada vez que recordamos ou falamos de determinada situação, eliminamos ou modificamos alguns elementos e acrescentamos outros. "Quem conta um conto aumenta um ponto", afirma o dito popular. E a nossa memória funciona exatamente desta forma - com um acréscimo: não só aumentamos um ponto, mas também eliminamos pontos e modificamos outros.

Não acredita? Então assista ao episódio The entire history of you (2011) da série Black Mirror. Neste episódio, todos os personagens possuem um implante nos olhos que registra de modo absolutamente fiel, em um grande filme, "toda a sua história". Tudo o que eles vivem - na verdade tudo o que veem e ouvem - fica registrado em um "grão" (um potente HD) inserido atrás de suas orelhas. E tudo isto permite que as memórias de cada um sejam fielmente reproduzidas em telas, inclusive naquelas instaladas em seus olhos - um processo chamado no episódio de "re-fazer" (re-do). Enfim, o que esta distopia nos permite perceber - ou relembrar - é que nossas memórias definitivamente não funcionam desta forma. Nossas lembranças não são filmes que ficam armazenados dentro dos nossos cérebros mas sim reconstruções imperfeitas e criativas de situações que vivemos no passado. Quando recordamos determinado evento não trazemos de volta em nossa mente as cenas originais mas as refazemos a partir do que pensamos e sentimos no presente. Isto aparece também no fantástico desenho animado Divertidamente (2015), que retrata de uma forma bastante fiel, ainda que com significativos erros, o funcionamento de nossa mente. No filme, cada memória criada pela personagem central gera uma bolinha que é conduzida para um enorme arquivo central - ou então descartada para o lixão das memórias (como de fato acontece com a maioria do que vivemos). Mas o que é mais interessante é que cada memória é colorida por uma determinada emoção primária (alegria, tristeza, raiva ou nojo), podendo ser também recolorida posteriormente por outra emoção. E isto sugere - e é assim que de fato acontece - que podemos nos lembrar de maneiras completamente diferentes da mesma situação dependendo de nosso humor no presente. Se você está feliz com seu namorado ou namorada no momento, muito provavelmente você se lembrará de situações positivas com ele ou ela. Mas se vocês brigaram por algum motivo, há uma grande chance desta raiva que você sente agora contaminar lembranças suas com esta pessoa e até mesmo "recolorir negativamente" episódios anteriormente vistos como positivos. Enfim, como bem afirma o protagonista do belíssimo filme Ela (2013), "o passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos". Na verdade o mais correto seria dizer que o passado é "apenas" o conjunto de histórias que contamos e recontamos e que construimos e reconstruimos continuamente a nós mesmos ao longo de nossas vidas. Nossas memórias, feliz ou infelizmente, não passam de ficções inspiradas na vida real.

Cena de Apagados: mentes e mundo destroçados
3ª Lição: A memória é fundamental para condução de nossas vidas e para a construção de uma vida em comum. Nenhum filme deixa isso mais claro do que Apagados. Em determinada cena, uma garota não contaminada com o "virus do esquecimento" que mora com seu pai em um Bunker subterrâneo, diz para ele que quer ir embora dali, que não aguenta mais viver trancada, que quer encontrar sua mãe. E então seu pai lhe fala: "Se você for, não estará só abandonando o lugar, mas estará deixando para trás tudo o que você é, as lembranças dos seus amigos, da sua mãe e de mim. Tudo o que lhe faz ser quem é desaparecerá". De fato basta observar os demais  personagens do filme para constatar que o pai tem razão. Ao sair do bunker muito provavelmente ela se contaminará e passará a vagar sem rumo pelo mundo como todos os demais seres humanos - que sem memória não passam de zumbis que simplesmente caminham e se alimentam quando encontram comida. Sem memória não é possível ir muito além disso. Se o mundo retratado pelo filme se tornasse realidade, com toda certeza imediatamente deixariam de existir a religião, a arte, a educação, a justiça e tudo o mais que compõe a vida em sociedade. Sem memória nada disso existiria. Pense bem. Como ensinar e aprender algo sem memória? Como produzir arte sem lembranças, sem referências, sem passado e sem outras pessoas que possam usufruir e se lembrar do que você produz? Como pensar em justiça e moral sem que as pessoas se lembrem das leis, do que é certo e do que é errado? Como se relacionar com as outras pessoas se no momento seguinte você não se lembrará quem elas são e qual sua relação com elas? Uma solução paliativa adotada por um personagem do filme é anotar o que acabou de fazer e o que pretende fazer - solução também adotada pelo protagonista do filme Amnésia, que tatua em seu próprio corpo as descobertas que vai fazendo no processo de investigação de quem matou sua esposa. O problema em ambos os casos é que a cada momento o sujeito terá de reaprender tudo do zero até o próximo esquecimento - isto caso se lembre de fazer as anotações, claro. Por outro lado, creio que em um mundo como esse não haveria sofrimento. Continuaria havendo dor física, claro, mas não sofrimento - da mesma forma que provavelmente uma pessoa com Alzheimer em estágio avançado não sofre. Nos dois casos, como o passado já não existe e o futuro não passa de uma abstração, os sujeitos vivem um contínuo presente. Sem memórias provavelmente viveríamos - como de fato algumas pessoas vivem - continuamente apagados, perdidos e isolados. Por tudo isso devemos ser gratos às nossas memórias pois embora elas não sejam exatas, elas são tudo que temos para sermos quem somos.

Update 19/11/16: A importância da memória social (que poderíamos chamar simplesmente de história) para a vida coletiva é tema também de dois outros filmes, ambos distopias, que acabei esquecendo de mencionar: Fahrenheit 451 (1966) e O doador de memórias (2014). O primeiro, um clássico do diretor François Truffaut inspirado na obra de Ray Bradbury, retrata um sociedade do futuro no qual os livros são proibidos e os bombeiros não tem mais a função de controlar incêndios mas, justamente o contrário, de atear fogo nos livros apreendidos -  o título do filme se refere, neste sentido, à temperatura de combustão do papel. A ideia por trás da proibição é que os livros trariam infelicidade e gerariam discórdia entre as pessoas e entre estas e o Estado. No entanto, como reação a esta política, surgem diversos grupos rebeldes em que cada um de seus membros possui em sua mente um livro integralmente decorado. São as pessoas-livro, que pretendem manter a memória social viva, a despeito do desejo do Estado de anulá-la. Já o segundo filme retrata uma sociedade onde não há mais doenças, guerras ou sofrimentos. Todos vivem numa completa e artificial felicidade - propiciada por um medicamento muito semelhante ao Soma do livro/filme Admirável Mundo Novo. Nesta sociedade as pessoas também não possuem memórias e nem tem acesso a livros - por motivos muito semelhantes aos de Fahrenheit 451: lembrar-se (e ler) gera reflexão, eventualmente sofrimento e potencialmente rebelião. No entanto, com o objetivo de manter as memórias sociais e, ao mesmo tempo preservar a população dos efeitos deletérios destas memórias, a uma única pessoa é delegado o conhecimento da história e cabe a esta pessoa não só manter viva a memória coletiva mas também guiar os demais com sua sabedoria. E de tempos em tempos esta tarefa muda de mãos, sendo este processo de transferência denominado doação de memórias. Pois bem, o que estes filmes trazem de reflexão é que as memórias sociais são fundamentais para a vida coletiva e não podemos de maneira alguma abrir mão delas entregando-as para o controle de um Estado soberano - afinal, como bem afirma o cartaz do filme O doador de memórias, "Quando não há memórias, a liberdade é apenas uma ilusão".